Circunscrição : 1 - BRASILIA Processo : 2005.01.1.076701-6 Vara : 306 - SEXTA VARA CRIMINAL Processo : 2005.01.1.76701-6 Ação : ACAO PENAL Autor : JUSTICA PUBLICA Réu : MARCELO VALLE VIEIRA MELLO
SENTENÇA
O Ministério Público denunciou MARCELO VALLE VIEIRA MELLO, devidamente qualificado nos autos, atribuindo-lhe a autoria do crime previsto no art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/89, por ter ele, segundo a denúncia, praticado preconceito em relação à raça negra, por intermédio de manifestações publicadas pela internet, no orkut, nas quais teria ofendido os negros, chamando-os de "burros", "macacos subdesenvolvidos", "malandros", "sujos" e "pobres". A denúncia foi recebida em 21 de setembro de 2005, conforme decisão de fls. 96 dos autos. Foi instaurado incidente de insanidade mental do acusado, conforme decisão de fls. 138. Devidamente citado após a conclusão do incidente, o acusado foi interrogado conforme termo de fls. 157/159, ocasião em que afirmou serem parcialmente verdadeiros os fatos narrados na denúncia. Alegações preliminares às fls. 161/162, com indicação de testemunhas e sem incursão no mérito. Em audiência de instrução realizada no dia 14 de fevereiro de 2007, foram ouvidas as testemunhas Rafael Ayan Ferreira (fls. 207/208) e Jacques Gomes de Jesus (fls. 209). Em audiência de instrução realizada no dia 16 de outubro de 2007, foi ouvida a testemunha de defesa Fernando Rodrigues de Souza (fls. 257). Em continuação, no dia 01 de abril de 2008 foram ouvidas as testemunhas Maria Celina Pereira de Lima (fls. 288) e Jefferson Vieira do Nascimento (fls. 289). No dia 10 de junho de 2008 foi ouvida a última testemunha de defesa, Luis Filomeno de Jesus Fernandes (fls. 291/292). Encerrada a instrução, na fase do art. 499 do Código de Processo Penal, o Ministério Público e a defesa nada requereram. Em alegações finais, o Ministério sustentou o pedido condenatório nos exatos termos da denúncia, requerendo a substituição da pena privativa de liberdade por medida de segurança consistente em tratamento ambulatorial (fls. 307/317). Na mesma fase, a Defesa pugnou preliminarmente pela declaração de nulidade do feito, alternativamente pela desclassificação do crime para injúria racial ou, em caso de entendimento diverso, pela aplicação da continuidade delitiva e pela substituição da pena privativa de liberdade por tratamento ambulatorial. (fls. 324/351). É o relatório. D E C I D O. Trata-se de ação penal de iniciativa pública incondicionada, imputando- se ao acusado a prática de crime de racismo qualificado. Terminada a instrução criminal, que transcorreu sem quaisquer vícios ou irregularidades, necessário se faz, por proêmio, analisar a preliminar de nulidade ventilada pela defesa. PRELIMINAR Afirma a defesa do acusado que o presente feito é nulo ou, na melhor das hipóteses, deve ser suspenso, tendo em vista que se originou de procedimento de investigação preliminar conduzido pelo Ministério Público e que a matéria - poder de investigação do Ministério Público - encontra-se em debate e julgamento perante o Pretório Excelso. Nesse aspecto, sorte não assiste à defesa, tendo em vista que o Ministério Público é titular da ação penal e, como tal, pode até mesmo dispensar o inquérito policial, desde que entenda que as peças e documentos sejam suficientes a sustentar a opinio delicti, especialmente em situação como a dos autos, em que a prova da autoria e da materialidade delitiva encontra-se induvidosa. O Ministério Público, por expressa previsão constitucional e legal (art. 129, VI, da Constituição Federal e art. 26, I, b, da Lei 8.625/93), possui a prerrogativa de conduzir diligências investigatórias, podendo requisitar diretamente documentos e informações que julgar necessários ao exercício de suas atribuições de dominus litis. Portanto, não há que se falar em nulidade do feito. Também não é o caso de suspensão do feito até ulterior decisão do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que não houve qualquer determinação da Corte Superior nesse sentido. Sobre o tema, já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios: HABEAS CORPUS 19990020013235HBC DF Registro do Acórdão Número : 115827 Data de Julgamento : 27/05/1999 Órgão Julgador : 1ª Turma Criminal Relator : OTÁVIO AUGUSTO Publicação no DJU: 18/08/1999 Pág. : 85 (até 31/12/1993 na Seção 2, a partir de 01/01/1994 na Seção 3) Ementa: HABEAS CORPUS. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DE PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO DO MP CONTRA POLICIAIS CIVIS - PORTARIA N. 799/96 - DESNECESSIDADE DE PUBLICAÇÃO - ATO ADMINISTRATIVO - INOCORRÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL § IMPÕE-SE A REJEIÇÃO DA PRELIMINAR DE NULIDADE DO PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA POLICIAIS CIVIS POR FALTA DE PUBLICAÇÃO DA PORTARIA N. 799, DE 21-11-96, QUE INSTITUIU O NÚCLEO DE INVESTIGAÇÕES E CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL, RESPONSÁVEL PELOS INQUÉRITOS POLICIAIS, EM RAZÃO DA DESNECESSIDADE DE PUBLICAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS, COMO A PORTARIA EM COMENTO, QUE VISAM TÃO- SOME NTE ESTABELECER NORMAS DE NATUREZA PECULIAR E COMPLEMENTAR À LEGISLAÇÃO. § NÃO HÁ FALAR EM CONSTRANGIMENTO ILEGAL NA PRÁTICA DE ATOS DE TAL NATUREZA, EM FUNÇÃO DA COMPETÊNCIA ATRIBUÍDA AO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA REALIZAR INVESTIGAÇÃO CONTRA POLICIAIS, COM VISTAS A COLIGIR ELEMENTOS PARA A INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL. § ORDEM DENEGADA. UNÂNIME. Assim, rejeito a preliminar de nulidade e o pedido de suspensão do feito e passo ao exame do mérito da demanda. MÉRITO Narra a denúncia que o acusado, ao se manifestar, no orkut, a respeito das cotas raciais para ingresso em universidades públicas, ofendeu a raça negra em três situações diversas. Síntese da primeira conduta do acusado: Na primeira ocasião, isto é, no dia 14 de junho de 2005, o acusado Marcelo postou a seguinte mensagem na internet - Orkut: " E VCES, FICAM AI PAGANDO PAU DA ÁFRICA, AQUELE BANDO DE MACACOS SUBDESENVOLVIDOS, QUERENDO ATRIBUIR VALOR A ESSA "CULTURA" NEGRA QUE SÓ TEM MÚSICAS SEM SENTIDO E TOSCAS QUE NÃO FAZEM MAIS QUE PROMOVER ORGIAS SEXUAIS ... PAU DAQUELE PRETO DOS PALMARES LÁ ... BAH... VOU JOGAR A REAL PRA VCS, SEUS MACACOS BURROS, EU NÃO SOU BRANCO COMO VCS TAMBÉM NÃO SÃO PRETOS ... AMBOS TEMOS MISTURA DE RAÇA NESSA PORRA ... AGORA VEM COM ESSE NEGÓCIO DE COTAS ... QUER DIZER QUE AGORA VCS QUEREM JUSTIFICAR A COR PRA CULPAR A GENTE DO FRACASSO DE VCS ... TOMAR NO CU... ... DEPOIS FICAM PERGUNTANDO PQ SE FORMA ESSES GRUPOS NO BRASIL ... COM ESSES MACACOS FALANDO BOSTA ESTILO O DONO DESSA COMUNIDADE ... ATÉ ME DÁ VONTADE DE VIRAR UM SKIN-HEAD TAMBÉM... SÓ ACHO QUE ELES TÃO PERDENDO TEMPO PQ VCS MACACOS VÃO ACABAR NA PRISÃO MESMO. PRETO NO CÉU É URUBU, PRETO CORRENDO É LADRÃO, PRETO PARADO É BOSTA. QUAL A DIFERENÇA ENTRE O PRETO E O CANCER? R: O CÂNCER EVOLUI! ACABOU... AGORA VAO LA PEGAR O CADERNO E MOSTRAR PRO MUNDO, SKIN- HEADS, BRANCOS E TODOS AQUELES "RACISTAS" QUE VCS INSISTEM EM DIZER, QUE VCS NÃO SÃO MONGOLOIDES E TEM A MESMA CAPACIDADE DE TODOS... VÃO ESTUDAR SUA CAMBADA DE VAGABUNDO... JÁ NÃO BASTA PRETO ROUBANDO DINHEIRO... AGORA ELE TAMBÉM ROUBA VAGA NAS UNIVERSIDADES... O QUE MAIS VAI ROUBAR DEPOIS?" No mesmo dia 14 de junho de 2005, agora não na comunidade sobre cotas raciais, mas no perfil de Claudiomar Maranhão no orkut, o acusado Marcelo postou: "INFELIZMENTE EM UNIVERSIDADE PÚBLICA NÃO DÁ CAMARADA, PRA BRANCO PASSAR PRECISA TIRAR 200, E PROS MACACOS PASSAREM EH SOH TIRAR - 200 ... UHAUHAUHHAUHA ... COMO MINHA FAMILIA TEM GRANA DIFERENTE DESSES MACACOS POBRES E SUJOS... PAPAI PAGA PARTICULAR PARA MIM... QUE POR SINAL EH MELHOR QUE A PUBLICA... TO POCO ME FUDENDO TAMBEM... ESSES PRETOS VAI EH ESTRAGAR A UNIVERSIDADE PUBLICA MAIS DO QUE JÁ ESTRAGARAM... NÃO SABEM NEM ESCREVER... E TA FALANDO O QUE O MACACO... VC NÃO EH TÃO PRETO ASSIM NÃO... E TEU PROFILE TA IGUALZINHO O MEU ... O QUE DIABO VC EH... QUER QUE UM NEGÃO COMA TEU CU NA UNIVERSIDADE EH?" O acusado Marcelo, conforme trechos acima colacionados, acessou uma comunidade no orkut, sobre as cotas raciais, e manifestou-se contra tais cotas. Para fazê-lo, utilizou-se das fortes expressões acima citadas, tendo especialmente chamado os negros que pretendem ingressar na universidade pública mediante o sistema de cotas de macacos subdesenvolvidos, macacos burros, vagabundos, além de ter afirmado que "vão acabar na prisão mesmo" e que "já não basta preto roubando dinheiro, agora ele também rouba vaga na universidade". Verifica-se, assim, que nessa segunda ocasião, o acusado postou mensagens no perfil pessoal de Claudiomar Maranhão, utilizando novamente expressões pesadas, chamando os negros que utilizam ou vão utilizar as cotas raciais para ingresso na universidade pública de macacos pobres e sujos e afirmando que tais pessoas iriam estragar a universidade pública. Síntese da segunda conduta do acusado: Em uma segunda conduta, o acusado postou as seguintes mensagens na comunidade do orkut: "PRA VCS QUE NÃO PASSARAM NA UNB, AQUI VÃO AS INSTRUÇÕES: DECLARE-SE NEGRO: 1 - TOME UM BANHO DE SOL 2 - APLIQUE CERA NO CABELO PARA ELE FICAR BEM DURO 3 - COLOQUE UMA CAMISETA ESCRITO "BLACK POWER" OU QUALQUER COISA LIGADA AO REGGAE, SE FOR MULHER COLOQUE TRANÇAS NO CABELO... QUANTO MAIS NEGRO VC PARECER MELHOR 4 - CHEGANDO NO DIA DA AVALIAÇÃO, USE GÍRIAS DA COMUNIDADE AFRO ESTILO "E AÍ MANOW", OU SEJA GÍRIAS EXTRAÍDAS DAQUELES RAPS DE FAVELADOS APÓS ISSO É QUASE CERTEZA QUE VC VAI CONSEGUIR ENTRAR NAS COTAS, POIS NESSE PAÍS DE RETARDADOS ELES AINDA NÃO ENTENDERAM QUE NÃO EXISTEM 100% DE NEGROS E 100% DE BRANCOS ... E CONTINUAM ACHANDO BONITO AUMENTAR O PRECONCEITO E COLOCAR ANALFABETOS PARA DESTRUIR COM O CONCEITO DA UNIVERSIDADE... APÓS SE DECLARAR NEGRO, VÁ PARA A PROVA E A PREENCHA COMO SE FOSSE UM CARTÃO DE LOTERIA, AFINAL, QUEREM UM EXEMPLO, PARA PASSAR PARA ENGENHARIA CIVIL SENDO BRANCO: NF DE 200, SENDO NEGRO: NF DE 12... ENTENDERAM NE...". Nessa segunda conduta, o acusado Marcelo afirmou que os negros que ingressassem na universidade por intermédio das cotas raciais iriam "destruir com o conceito da universidade" e que não precisariam fazer a prova, mas apenas preencher de qualquer maneira o cartão de avaliação, pois ainda assim seriam aprovados. Síntese da terceira conduta do acusado: Na terceira manifestação indicada pelo Ministério Público, o acusado afirmou no orkut, no dia 13 de julho de 2005: " (...) VCS TÃO PUTOS PQ TOQUEI NA FERIDA DE VCS, NA FERIDA DE COMO VCS MALANDROS DESOCUPADOS ENTRARAM NA UNB ROUBANDO A VAGA DE UMA PESSOA CAPAZ... ISSO QUE DEVERIA SER CRIME NESSE PAÍS". Como visto acima, na terceira e última conduta imputada ao acusado como racismo, pelo Ministério Público, Marcelo teria chamado os negros que ingressam na universidade pública por intermédio do sistema de cotas raciais de malandros desocupados, afirmando que tais pessoas roubam as vagas das pessoas capazes. Análise sistêmica das manifestações do acusado Após a análise dos trechos acima colacionados em conjunto com as declarações do acusado e com seu perfil psicológico, traçado no laudo de exame psiquiátrico nº08345/2006 (fls. 21/25 dos autos nº 2005.01.1.143234-6), pode-se concluir que a intenção do acusado, verdadeiramente, era de se manifestar contra o sistema de cotas raciais para o acesso às universidades públicas e não contra os negros, conforme passo a delinear. Perfil psicológico do acusado Necessário se faz traçar um perfil psicológico do acusado Marcelo, em face das peculiaridades do caso concreto em apreço, calcada nos elementos presentes nos autos para, a partir disso, construir o percurso de vida do acusado e de todos os processos psicológicos que o possam ter conduzido à pratica do crime que lhe é imputado na denúncia, e só então efetivamente saber quanto ao elemento subjetivo do crime. Consta do laudo de exame psiquiátrico nº08345/2006 (fls. 21/25 dos autos nº 2005.01.1.143234-6): "Conta que em janeiro de 2005 entrou em uma comunidade sobre os direitos dos negros, e que deu-lhe uma raiva muito sobre isso, pois percebia agressividade quando discutia o assunto com eles. Refere que vinha "sacaneando" e fazendo provocações há muito tempo nessa comunidade, inclusive os brancos também, dotados de um "poder branco". Foi quando então resolveu "sacanear" (sic") o sistema de cotas da UNB. Houve resposta pessoais e uma discussão virtual entre ele e aqueles que posteriormente viriam a denunciá-lo. Diz que estas pessoas que o denunciaram são funcionários da própria universidade, e que fizeram isto após agredi-lo fisicamente. Seu computador foi apreendido na ocasião. O periciando fala que continua contra as cotas, que está se sentindo cassado por emitir suas opiniões. Fala que não é racista e que gosta de pessoas negras". Conclui o laudo, posteriormente, que o acusado tem humor básico com forte tônus depressivo, que faz tratamento psicoterápico, com uso de medicação controlada (Geodon, Daforin e Venlift), que tem tendência a agir impulsivamente sem medir as conseqüências, o que é produto de sua imaturidade. Concluem os peritos que o acusado é portador de transtorno de personalidade emocionalmente instável, do tipo impulsivo. O transtorno de personalidade emocionalmente instável equivale ao CID - 10 e possui duas subespécies - tipo impulsivo e tipo borderline. No caso do réu, os peritos auferiram que ele é portador do transtorno do tipo impulsivo, cujas características são: Pelo menos três dos seguintes sintomas abaixo devem estar presentes; é obrigatória a presença do sintoma B: A. Tendência em agir impulsivamente e sem consideração com as conseqüências; B. Tendência a ter um comportamento briguento e entrar em conflito com os outros, especialmente quando os atos violentos são contrariados ou criticados; C. Tendência a explosões de ira e violência, com incapacidade de controlar os resultados subseqüentes; D. Dificuldade em manter qualquer ação que não ofereça recompensa imediata; E. Humor instável e caprichoso. Ao estudar um pouco mais sobre o transtorno de personalidade emocionalmente instável do tipo impulsivo, lembrei-me imediatamente do interrogatório do acusado Marcelo, onde tive exatamente as mesmas impressões que são apontadas como características obrigatórias dos portadores de tal transtorno. Marcelo, efetivamente, é um adolescente de comportamento imaturo, que muitas vezes durante o seu interrogatório demonstrou irritabilidade ao falar sobre o presente processo e especialmente sobre a testemunha Rafael Ayan, a quem imputa o fato de estar sendo acusado. Demonstrou que, ao se manifestar contra as cotas raciais agiu impulsivamente e sem consideração com as conseqüências que poderia vir a sofrer e efetivamente sofreu. Demonstrou ter um comportamento briguento e entrar em conflito com os outros, especialmente quando foi contrariado ou criticado. Suas manifestações contra as cotas raciais foram excessivamente pesadas na medida em que não sou be expor, de forma tranqüila e coerente, seu posicionamento sobre o tema. Revelou ter tido, em suas manifestações no orkut, explosões de ira e violência, com incapacidade de controlar os resultados subseqüentes. Resta analisar, então, se a personalidade do acusado influenciou no elemento subjetivo do tipo, que ora passo a analisar. Análise do tipo penal Dispõe o art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/89: Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. Trata-se de crime de conteúdo variado ou de ação múltipla, que prevê as condutas de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. No caso em apreço, teria havido por parte do acusado a prática de preconceito de cor, tendo em vista que não houve discriminação, a qual consiste em uma "quebra do princípio da igualdade, como distinção, exclusão, restrição ou preferência, motivado por raça, cor, sexo, idade, trabalho, credo religioso ou convicções políticas" . A conduta do acusado, com efeito, não importou em qualquer exclusão, restrição ou preferência motivada pela cor, mas sim em uma manifestação acerca do sistema de cotas raciais para ingresso em universidade pública. Não há que se falar em prática de injúria qualificada, ao contrário do que pretende a defesa, pois nesta "o agente quer ofender a honra da pessoa com a qual teve algum tipo de altercação e o faz por intermédio de referência à sua cor, raça, etnia, religião ou origem. Já no crime do art. 20, o agente evidencia seu preconceito ou discriminação contra toda uma raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, ainda que manifestada na presença e desfavor de uma pessoa" . Com efeito, se houve altercação, foi com a testemunha Rafael Ayan, que sequer é negro, motivo pelo qual não há injúria racial. O crime cujo tipo foi acima colacionado é formal, consumando-se com a prática, induzimento ou incitação. O elemento subjetivo é o dolo. A conduta de Marcelo, dessa maneira, teve a intenção direta, a vontade livre e consciente de praticar o preconceito de cor? Segundo Josiane Pilau Bornia , preconceito é o "conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; julgamento ou opinião formada sem levar em conta os fatos que o contestam". E prossegue, explicando que "o caráter de inflexibilidade está embutido no termo, pois o indivíduo preconceituoso é aquele que se fecha em determinada opinião, deixando de aceitar o outro lado dos fatos". É preciso salientar que a opinião contra o sistema de cotas raciais não é crime, crime é o preconceito contra os negros, em face de sua cor. Nessa seara, a manifestação do acusado, inicialmente, seria desprovida da tipicidade formal, não fosse o fato de ter ele se referido pejorativamente contra os negros. Ocorre que, analisando detidamente os autos, verifica-se que o acusado em momento algum quis denegrir os negros. Não demonstrou um julgamento antecipado, uma intolerância em relação aos negros, mas sim ao sistema de ingresso nas universidades públicas por intermédio de cotas raciais. Sua maneira de se expressar, todavia, foi evidentemente condenável, mas é explicada em face de sua personalidade e do transtorno do qual é portador. Com efeito e como visto, os traços marcantes dos portadores do transtorno de personalidade emocionalmente instável do tipo impulsivo são a tendência em agir impulsivamente e sem consideração com as conseqüências, a tendência a ter um comportamento briguento e entrar em conflito com os outros, especialmente quando os atos violentos são contrariados ou criticados e ainda a tendência a explosões de ira e violência, com incapacidade de controlar os resultados subseqüentes, que foi o que ocorreu no caso em questão. Verifica-se de tal forma que o acusado manifestou-se nos termos narrados na denúncia com a intenção somente de se posicionar contra o sistema de cotas raciais para ingresso nas universidades públicas que ele chegou a afirmar que, ao contrário dos negros, seu pai poderia pagar sua faculdade. No entanto, seu pai faleceu quando ele tinha apenas um ano de idade. O acusado tinha 19 anos na data do fato, isto é, era adolescente. Edith Piza, em seu artigo "Adolescência e Racismo: uma breve reflexão", assevera que os adolescentes vivem uma fase em que as diferenças são nitidamente demarcadas e o preconceito e a discriminação se acentuam entre colegas, na escola e no lazer . E prossegue: "Os adolescentes brancos de classe média (os mais visivelmente guetizados5), se isolam em suas escolas privadas, seus condomínios fechados, seus clubes, nos shopping-centers - seus espaços preferenciais de convivência, praticamente desconhecendo a possibilidade de conviver com o outro "diferente" em condição de igualdade. Esta recorrente confirmação de sua não-racialidade causa um impacto extremamente forte sobre a possibilidade de um movimento para fora do seu grupo; e quando ele ocorre, pode vir a ser algo parcial ou rejeitado pelos seus "iguais". É temerário que o juiz se abstenha de levar em consideração tais aspectos da psicologia criminal que, aliás, se tornou uma disciplina de muitos cursos de direito. O juiz de primeira instância tem contato direto com o acusado e todas as testemunhas e, assim sendo, pode concluir, como ora o faço, que o acusado Marcelo não é uma pessoa racista, mas sim um adolescente portador de transtorno emocional, que viveu toda sua vida sem uma orientação masculina, tendo uma mãe portadora de transtorno psiquiátrico e vivendo ora com ela, ora com a avó. Vive uma vida oculta atrás do anonimato do computador, mal da adolescência da modernidade, onde se esconde para freqüentar comunidades e sites onde pode expressar toda a sua revolta com a vida, com o ser humano em geral, pois quando criança foi vítima de chacotas por ser gordo, e ainda hoje continua sendo, tanto que chegou a ser fisicamente agredido, teve que trancar o curso que cursava na UNB e perdeu a possibilidade de realizar o sonho de pleitear uma bolsa de estudos no Japão - tudo por causa do presente processo (interrogatório do acusado, fls. 157/159). Voltando à análise do tipo penal, viu-se acima que a conduta preconceituosa se caracteriza que por uma inflexibilidade que está embutida no termo, pois o indivíduo preconceituoso é aquele que se fecha em determinada opinião, deixando de aceitar o outro lado dos fatos. Sendo assim, o preconceituoso quanto à cor não aceitaria o outro lado dos fatos, ou seja, não teria tolerância com negros, por ter preconceito quanto a tais pessoas, somente pela cor da pele. Não é o que exsurge dos autos em apreço. A testemunha MARIA CELINA PEREIRA DE LIMA, que é negra, afirmou em juízo "que não considera o acusado uma pessoa racista, nunca tendo percebido qualquer comportamento nesse sentido, inclusive esclarecendo que tem uma filha morena que freqüenta a casa do acusado nunca tendo havido qualquer problema". A testemunha JEFFERSON VIEIRA DO NASCIMENTO afirmou em juízo que: "possui um centro automotivo de conserto de carros que é freqüentado pelo acusado e sua família há 9 ou 10 anos; que o depoente também já freqüentou alguns eventos na residência do acusado, o qual considera uma pessoa normal, com comportamentos típicos de adolescentes/; que já presenciou o acusado depressivo algumas vezes, mas não agressivo; que a cor da pele do depoente é negra e nunca teve qualquer problema com o acusado, em função disso; que o acusado nunca teve comportamento racista em relação ao depoente" A testemunha LUIS FILOMENO DE JESUS FERNANDES, também negro, afirmou que: "foi professor do acusado da disciplina arquitetura de computador II durante um semestre, não se recordando se no ano de 2004 ou 2005; que soube dos fatos mencionados na denúncia somente na presente audiência; que teve com o réu apenas relação de professor/aluno, podendo informar, que nesse relacionamento, nunca notou qualquer atitude racial por parte do acusado, tanto dentro como fora de sala de aula; que com relação ao comportamento do acusado, nada de desabonador tem a afirmar, exceto com relação a um incidente em sala de aula na qual o acusado falou que passava muitas noites no computador se divertindo e em outra ocasião falou algo em relação a genitália, sendo que o depoente chegou a chamar a atenção dele porque tinha menina na sala". A conduta do acusado não foi dirigida à finalidade de praticar a discriminação ou preconceito de cor, mas sim à de se manifestar veementemente contra o sistema de cotas raciais. É impossível, como pretende o Ministério Público, pinçar frases isoladas das manifestações do acusado e assim concluir que ele praticou preconceito de cor e que tinha a intenção direcionada a tal finalidade. A análise global das manifestações do acusado, motivadas pela sua posição pessoal contrária ao sistema de cotas raciais e, posteriormente, pela desavença que teve com Rafael Ayan, o qual chegou a agredi-lo fisicamente e a colocar cartazes em toda a UnB chamando o acusado de "Marcelo, o racista", terminando por motivar o trancamento da matrícula do acusado e a perda de uma bolsa de estudos para o Japão . Admitindo que a intenção do acusado fosse a de praticar preconceito de cor, haveria, necessariamente, que ficar provada essa vontade, sendo certo que o Ministério Público não logrou provar esse elemento. Pelo contrário, disse o acusado em seu interrogatório, em juízo (fls. 157/159): "... que na época dos fatos, como não fazia amigos, e estava pretendendo encerrar sua conta do orkut, resolveu "criar 1000 inimigos" para assim se tornar popular, o que efetivamente ocorreu, embora não esteja satisfeito com a dinâmica dos fatos; que havia cerca de cinco mil membros na comunidade "Semeadores da Discórdia"; que o interrogando criou um tópico dentro de tal comunidade intitulado discórdia na UNB; que tal discórdia deveria ficar apenas no plano virtual, não havia a intenção que ultrapassasse para a vida real... que o interrogando ficou muito irritado, pois o computador era sua única forma de diversão (sobre a busca e apreensão de seu computador); que depois disso, ao entrar no orkut, viu que Rafael estava se vangloriando do ocorrido, tendo então o interrogando resolvido "ridicularizar geral"... hoje, melhor analisando os fatos, acredita que poderia ter utilizado de outra formas de manifestar sua opinião em relação as cotas de negros, que não as expressões pejorativas efetivamente utilizadas; que também foi xingado em tal comunidade, por exemplo, de "gordo idiota"; que no início das discussões, limitou-se a manifestar sua opinião sobre as cotas, mas após também ser xingado, utilizou as expressões que consta da denúncia; que a intenção nunca foi ser racista, mas sim fazer uma brincadeira para deixar todo mundo irritado; que se tivesse a intenção de ser racista, não teria utilizado o seu perfil verdadeiro..." É preciso, como dito alhures, analisar as manifestações mencionadas na denúncia, pois "não se pode extrair de um fato isolado a intenção de tripudiar sobre uma comunidade inteira. Na procura do elemento subjetivo desse delito é fundamental e indispensável a análise dos antecedentes do agente. Só uma investigação correta de sua vida pregressa seria capaz de revelar sua vontade" . "Cotas geram ódio racial" O presente processo é fruto de um ódio racial criado pelo sistema de cotas raciais para ingresso nas universidades pública e já anunciado pela Procuradora do Distrito Federal Roberta Fragoso Kauffman, em artigo intitulado "Cotas geram ódio racial", publicado na revista Istoé. Na entrevista, a procuradora afirmou que as cotas, além de inconstitucionais, são fruto de uma cópia imperfeita do modelo norte- americano, ressaltando ainda que "mesmo nos EUA, hoje se abandona esse sistema porque ele gerou ódio racial maior do que efetivamente integrou o negro na sociedade" . Afirma ainda que a cota para os negros seria um preconceito contra os negros. Foi o que ocorreu nos bastidores do presente processo. Verifica-se às fls. 29 dos autos que, após uma das mensagens postadas pelo acusado, houve uma verdadeira discussão virtual a respeito do tema, sendo que um dos usuários, apoiando o acusado Marcelo, chegou a afirmar Gabriel (12/7/2005 - 16:01 - "Preconceituoso é todo mundo que é contra as cotas? Anota aí, eu sou racista também". Disse o usuário PSDB (fls. 34): "gostei de quem disse que ser preto no Brasil dá lucro. Na hora que a coisa aperta todo mundo é preto... cambada de racistas de merda... se eu operar meu joelho mais uma vez e me disserem que quem vai operar vai ser um médico preto que se formou na UnB, mando amputar a perna direto". Na mesma comunidade, Marcelo chegou a ser ameaçado e xingado por vários internautas, dentre eles seu desafeto Rafael Ayan: "é capaz de mesmo sem descobrirem o seu curso te espancarem antes do primeiro dia" (fls. 29). Disse Claudiomar (fls. 38): "galera... se vocês estão putos com esse cara, imagina eu que fiquei bem um mês vendo esse nerd espinhento-pega- ninguém enchendo os saco na minha comunidade". Rafael Ayan, por seu turno, transformou o presente processo em uma disputa pessoal, chegando até mesmo a se registrar no orkut com o nome "RAFAEL AYAN ganhei novamente racista fdp", acrescentando no tópico "sobre mim" de seu perfil: "... pode esperar que sua hora vai chegar. Já vou depor contra você e em pouco tempo você vai chorar para o carcereiro para entrar na internet. Canta comigo assim galera: Rafael Ayan com racista você é mal ganha até no braço e também no virtual", referindo-se às agressões físicas perpetradas contra o acusado e ao presente processo (fls. 210). E continuou: "vc é uma aberração.... vai lembrar deste (exatamente deste) scrap quando estiver na cadeia. É fato que você vai ser preso. Você é um verme racista. Sua avó já foi parar no hospital com infarto por sua causa. Sua mãe se segura como pode para que sua pena seja reduzida. Seu pai morreu quando você ainda era uma pequena criança - ninguém te agüenta, essa é a verdade. Voc/~e (sic) sempre foi um fraco de idéias, um fraco fisicamente, um fraco, e quase nem isso (fls. 212). E mais à frente o chama de "fdp nazistinha". Este processo se tornou uma manifestação de uma briga entre duas pessoas imaturas, adolescentes, e não um processo cujo escopo seria a análise da prática de crimes contra todos os negros. O que se conclui é que a forma de manifestação na dita comunidade estava excessivamente pesada, que além do acusado outras pessoas proferiram palavras que poderiam também ser consideradas racistas, sem que o Ministério Público os denunciasse e que o acus ado xingou e foi xingado, em um estado de ânimo excessivamente acirrado, que desnatura o elemento subjetivo do tipo penal do racismo. Doutrinariamente, indo mais além e propondo mesmo a descriminalização da prática do racismo, idéia esta com a qual não partilho, Alexandre Magno Fernandes Moreira afirma que "é impossível que a intensa discussão a respeito do racismo não contamine as relações entre negros e brancos no Brasil. Cada negro é levado a suspeitar de qualquer conduta ou opinião mais desfavorável de um branco, imaginando ser vítima de um ato racista. Os brancos, por sua vez, devem tomar cuidado redobrado com cada palavra dita a um negro, sob pena de ser considerado racista" . Colisão de direitos fundamentais A Constituição Federal prevê a liberdade de expressão no artigo 5° inciso IV que afirma ser "livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato". O artigo 220 também versa sobre esse assunto quando expressamente afirma que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nessa constituição". Por outro lado, a dignidade da pessoa humana, é preceituada no artigo 1° da Magna Carta, como fundamento da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito. Esses dois direitos fundamentais, no presente caso, estão em conflito. Seguindo as lições de Robert Alexy, em tais casos, deve-se ponderar, concretamente, qual direito terá primazia sobre o outro, analisando- se, como no caso vertente, se a dignidade dos negros está efetivamente correndo perigo e se esta ameaça é grave o suficiente a ponto de limitar a liberdade de expressão. Obviamente, não estão abrangidos pela proteção da liberdade de expressão insultos, ofensas, estímulo à intolerância racial ou tratamento hostil, o que pode configurar mais de uma modalidade de crime. Todavia, para que haja o crime, como exaustivamente demonstrado acima, é necessário que o elemento subjetivo do tipo esteja muito bem provado, pena de se incidir na odiosa responsabilidade penal objetiva. No caso dos autos, ao fim e ao cabo, o que se pode concluir é que as manifestações do acusado foram todas direcionadas a manifestar sua opinião pessoal contrária ao sistema de cotas raciais para ingresso nas universidades públicas . Marcelo, no entanto, excedeu-se no uso das palavras, por imaturidade que é fruto de sua experiência pessoal de vida, pois não teve um pai presente para lhe dar orientação e foi criado por uma mãe portadora de distúrbio psiquiátrico (fls. 288 destes autos e 21 dos autos em apenso, nº 143234-6), que não pôde, da forma adequada, estar presente em sua vida para evitar episódios como o presente. Marcelo não é racista. Convive com negros e é tido em bom conceito por eles. Marcelo é imaturo e possui transtorno de personalidade emocionalmente instável do tipo impulsivo. Tal quadro já vem sendo acompanhado e tratado de forma adequada por seu médico psiquiatra, Dr. Antonio Geraldo da Silva (fls. 290). Marcelo, provavelmente, aprendeu com o streptus judici (escândalo do processo), o que não aprendeu em casa, por não ter uma família equilibrada a lhe amparar. Certo é que dolo não houve. E não estando presente o dolo como elemento subjetivo do tipo, crime de racismo não há. Posto isso, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão punitiva deduzida na denúncia e ABSOLVO o acusado MARCELO VALLE SILVEIRA MELLO, com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal. Após o trânsito em julgado, dê-se baixa na distribuição, fazendo-se as comunicações e anotações necessárias. Sem custas. P.R.I. Brasília (DF), 29 de julho de 2008.
GEILZA FÁTIMA CAVALCANTI DINIZ
JUÍZA DE DIREITO SUBSTITUTA
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